quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Década de 1930: A época de ouro do design automotivo (Parte III). Airflow, o filho do vento e de uma Chrysler à frente de seu tempo.



Assim como entre as pessoas, no mundo do automóvel a idéia da divisão entre os bem sucedidos e os fracassados costuma, de um modo geral, passar por cima de quaisquer critérios que não sejam aqueles relacionados ao lucro. Dentre os maiores sucessos e os mais retumbantes fracassos da história do automóvel, o termômetro geralmente utilizado para se julgar se um modelo foi ou não bem sucedido são os frios números de suas vendas. Afora as qualidades e defeitos de cada projeto, exemplos como o do  espetacularmente bem sucedido Modelo T (com suas mais de 15 milhões de unidades vendidas) ou o escandaloso fracasso nas vendas do Edsel, entraram para os anais da história como representantes do céu e do inferno para o seu fabricante, a Ford. E assim tem ocorrido, em maior ou menor grau, com  todas as outras marcas, cada uma delas com algumas boas histórias de sucesso para se recordar com orgulho e outras que estão guardadas na memória como lições amargas a serem lembradas, para que não se repitam os erros do passado. Evitando romantizar aqui o mundo corporativo, que tem seu foco voltado para o lucro, vamos então falar um pouco dos lucros indiretos, aqueles difíceis de se traduzir em números, tais como a valorização da imagem de uma marca, como aquela - de liderança tecnológica - conquistada pela Chrysler com o ousado lançamento do Airflow, que estabeleceu novos parâmetros tecnológicos e conceituais, inspirando toda uma geração de modelos da concorrência e representando um verdadeiro marco para a história do automóvel, apesar de seus fracos números de vendas. Acredito que carros como o Airflow mereceriam ser enquadrados em uma terceira categoria, além daquelas dos bem sucedidos e dos fracassados, e a qual poderíamos muito bem intitular de avatares, onde se enquadrariam os modelos que fizeram a diferença na evolução do automóvel, promovendo um salto qualitativo em seu conceito, independentemente dos números de suas vendas. Na mitologia, o termo avatar alude a algo como uma ordem de seres superiores que teriam como missão promover a ascensão dos comuns, mostrando-lhes, através do exemplo, um novo caminho evolutivo. Guardadas as devidas proporções, os avatares da mundo do automóvel, assim como seus pares mitológicos, raramente são compreendidos em sua totalidade na época de seu surgimento, simplesmente pelo fato das pessoas não estarem totalmente preparadas para recebê-los e aceitá-los num primeiro momento. Com o passar do tempo, porém, o que antes era motivo até mesmo de chacotas, passa a ser compreendido em sua totalidade, e o reconhecimento de seu valor, ainda que na forma de uma homenagem póstuma, acaba por fazer justiça e colocá-los em seu devido lugar de importância na história.

Esse certamente é caso do Chrysler Airflow de 1934, um dos maiores avatares da história do automóvel. E para que lhe reconheçamos a importância, agora que de seu lançamento nos encontramos devidamente distanciados no tempo, basta olharmos para o que os carros eram antes do Airflow e o que se tornaram depois dele.

Vamos nos debruçar então, ao longo de alguns parágrafos, sobre o contexto histórico e tecnológico no qual nasceu o Airflow, para entendermos o preço que a Chrysler pagou pelo desenvolvimento de uma verdadeira revolução sobre rodas e o forte significado que ele acabou tendo para a história, para o Streamline Design e para seu fabricante, colocando-o numa posição de vanguarda perante a concorrência.

Antecedentes: A constatação do atraso e os esforços para superá-lo
Apesar dos estudos levados à frente nos anos 20 pelos pioneiros das pesquisas em aerodinâmica aplicada aos automóveis - tais como Paul Jaray ou Edmund Rumpler - e afora o fato de alguns raros exemplares experimentais terem sido construídos por alguns visionários ou sob encomenda de milionários excêntricos, os veículos de produção de grande série, entretanto, pouco mudaram até o início dos anos 30. As carrocerias inteiramente metálicas, desenvolvidas e patenteadas pela Budd Co. dos Estados Unidos, não estavam totalmente popularizadas, sendo que muitos fabricantes ainda utilizavam madeira em suas estruturas, que eram posteriormente revestidas, em sua maioria, com chapas de aço ou alumínio. De um modo geral as carrocerias eram montadas sobre chassis que comportavam motores instalados logo atrás do eixo dianteiro, fazendo com que o habitáculo ficasse bastante recuado em relação ao limite frontal do veículo, acentuadamente nos modelos de alto luxo, com seus grandes motores multicilíndricos dispostos longitudinalmente. Como conseqüência, os passageiros do banco de trás viajavam montados sobre o eixo traseiro, que transmitia os solavancos sofridos pelo caminho diretamente para os ocupantes.

Duas caixas sobre quatro rodas
Com semântica quase arquitetônica, de desenho basicamente ortogonal, formado por uma série de colunas interligadas por longarinas e traversinas virtualmente retilíneas, as carrocerias compunham-se - do ponto de vista formal - da união de dois volumes principais, à semelhança de caixas montadas em seqüência longitudinal, uma das quais respondendo pelo habitáculo e a outra, mais baixa e estreita, fazendo o papel de cofre do motor. Essas duas “caixas” eram, por sua vez, cercadas por quatro arcos salientes afixados ao conjunto, compondo os paralamas. Agregue-se ainda os faróis, estepe(s) e porta-malas na forma de um baú externo à carroceria e obtém-se o retrato de um carro típico do período. Apesar dessa configuração gerar como resultado alguns modelos de proporções extremamente elegantes, principalmente entre as marcas de alto luxo, o aproveitamento do espaço, entretanto, era pouco eficiente, restringindo a volumetria do compartimento de passageiros, além de conferir aos automóveis a aparência de um amontoado de peças montadas sobre quatro rodas. Faltava-lhes, portanto, uma unidade formal, uma fluidez e uma linguagem estética próprias, que os distanciassem definitivamente de seus ancestrais, as carruagens. Porém, foram poucas as mudanças conceituais promovidas desde os anos 20 até o início da década de 30, sendo as mesmas limitadas a detalhes como o arredondamento dos cantos vivos da carroceria, o que ajudava a minorar, porém não resolvia os problemas da grande resistência aerodinâmica reinante nos modelos do período. Uma evolução tão pequena e pouco significativa em termos aerodinâmicos, que de acordo com um depoimento prestado na época pelo professor Alexander Klemin, da Guggenheim School of Aeronautics, de Nova Iorque, o mais aerodinâmico dentre os sedans de 1933 era apenas 9% mais eficiente que um sedan similar de 1922. As pesquisas mostravam, por exemplo, que um carro rodando a 70 milhas por hora (cerca de 112 Km/h), consumia aproximadamente 85% da potência gerada pelo motor apenas para vencer a resistência do ar, enquanto os outros 15% eram utilizados para vencer a resistência à rolagem, à fricção e à carga. Isso significava que rodando a 80 Km/h, um carro comum consumia até 70% de seu combustível apenas para realizar o trabalho de vencer a resistência do ar. Tal constatação já justificaria, por si só, um pesado investimento no estudo da aerodinâmica, tornando os automóveis mais econômicos e velozes, além de mais seguros e confortáveis.

Chrysler Imperial de 1933: Os cantos arredondados eram uma das poucas diferenças notadas entre os carros do início dos anos 30 e os modelos da década anterior.
O motor posicionado atrás do eixo dianteiro e o habitáculo recuado proporcionavam uma distribuição de massas extremamente elegante em alguns casos; Porém esse layout fazia com que os passageiros do banco de trás viajassem sobre o eixo traseiro. Além do mais, do ponto de vista da aerodinâmica, essa configuração era bem pouco eficiente. Note que no diagrama acima, foi incluído o volume normalmente ocupado por um baú, que fazia as vezes de porta-malas e era afixado ao rack original de fábrica, visível na imagem anterior.
Mas apesar da aparente lentidão na evolução das carrocerias no período, havia muita gente trabalhando com esse objetivo em caráter experimental, preparando o que viria a se tornar um verdadeiro salto conceitual no desenho dos automóveis nos anos que se seguiriam. As conclusões a que chegaram os pioneiros da aerodinâmica - notadamente Paul Jaray, com seu Perfil “J” (abaixo) - haviam indicado os caminhos que levariam a uma reavaliação no conceito de package*, visando atender a preceitos aerodinâmicos que sugeriam um deslocamento de volumes em direção à parte dianteira dos automóveis, com o objetivo de aproximá-los da forma de uma gôta d'água. Paul Jaray foi, por esse motivo, um dos nomes de maior influência de todos os tempos no estilo dos automóveis, com seus princípios aerodinâmicos sendo adotados, em maior ou menor grau, pela maioria dos fabricantes a partir dos anos trinta.  A semelhança entre a forma dos protótipos aerodinâmicos desenvolvidos por Jaray, ainda no início dos anos 20, e alguns ícones da história do automóvel, tais como o próprio Airflow, o Beetle, os Tatra e inúmeros outros, não é, portanto, fruto do acaso. Aliás, a Chrysler foi obrigada mais tarde a pagar royalties para Jaray, em decorrência da aplicação de seus princípios ao desenho do Airflow.

*Package: termo em inglês, utilizado nas áreas da engenharia e  design automotivo, para a representação  dos sistemas e elementos mecânicos mais os passageiros e bagagens, com vistas a analisar, dentre outros fatores, sua interferência na determinação das formas da carroceria.

Acima, Paul Jaray e alguns veículos experimentais desenvolvidos por ele para fabricantes europeus no início dos anos 20, que apresentavam o famoso "perfil J". Jaray, um pioneiro da aerodinâmica aplicada ao automóvel, com forte influência sobre sua evolução, será assunto para um futuro artigo no autotimeline.
Com os Estados Unidos e grande parte do mundo vivendo a Grande Depressão, era premente a criação de novos estímulos de consumo para fazer o dinheiro voltar a girar na economia (veja em posts anteriores as Partes I e II desta série). E em pleno período do movimento Art Deco, conferir aos produtos uma aparência mais aerodinâmica trouxe o estímulo do qual o público precisava para voltar a consumir. No âmbito da indústria automobilística então, a aerodinâmica se tornaria não apenas um forte apelo de consumo, mas uma real necessidade de melhora do desempenho dos produtos. E a realização prática mais significativa nessa direção foi a apresentada pela  Chrysler, que ao investir recursos próprios em estudos de aerodinâmica e engenharia ao longo de cerca de seis anos, visando o lançamento do Airflow, viria a catalizar um processo evolutivo igualmente empreendido por marcas como a Tatra, da então Checoslováquia ou a francesa Citroën, dentre outras.  O projeto do Airflow influenciaria enormemente a forma das carrocerias dos carros fabricados nos Estados Unidos e no mundo, levando a indústria a reavaliar totalmente o conceito dos automóveis a partir da segunda metade dos anos 30.

A fonte de inspiração que levou ao longo período de gestação do Airflow
Ainda em 1927, a Chrysler iniciou estudos sobre um carro aerodinâmico de conceito revolucionário. Uma das versões conhecidas conta que tudo teria começado quando, ao volante de seu carro, Carl Breer (1883-1970) - na época o diretor de pesquisas da marca - teria se mostrado impressionado com o vôo suave e coordenado daquele que parecia ser um bando de gansos selvagens  aproximando-se de Port Huron, estado de Michigan. Os gansos eram na verdade aviões de combate voltando para a base aérea de Selfridge Field. O equívoco um tanto constrangedor, teria servido para despertar, entretanto, ainda mais a admiração e o interesse de Breer sobre como a forma dos aviões havia se inspirado nas aves, tirando vantagem, assim como elas, das correntes de ar. Perguntando-se porque os carros não poderiam fazer o mesmo em terra, Breer pensou o quanto eles ainda poderiam evoluir e passou então a coordenar uma equipe técnica dedicada a desenvolver não apenas e simplesmente um novo modelo, mas uma  verdadeira revolução no conceito dos automóveis, baseada principalmente na aerodinâmica e devidamente avalizada por Walter Percy Chrysler, o fundador da empresa.

Objetivo: A aerodinâmica aplicada a um veículo de produção em série
Um dos primeiros passos adotados pela equipe chefiada por Breer, foi a construção de vários modelos em escala - confeccionados em madeira – tanto de veículos existentes na época quanto de novas propostas investigativas, testando-os em um túnel de vento feito especialmente para o projeto, modificando-lhes a forma incansavelmente e anotando cada alteração de resultados verificada, na busca de um desenho de carroceria que tornasse os carros mais eficientes aerodinamicamente. Construído em um laboratório secreto em Dayton, Ohio, sob a orientação de Orville Wright (que juntamente com seu irmão Wilbur, já havia se utilizado de um equipamento similar durante o desenvolvimento de seus aviões), o túnel de vento da Chrysler  - ainda que comportasse apenas o ensaio de modelos em escala - foi uma peça chave para o entendimento do comportamento aerodinâmico dos automóveis por parte da equipe. Dentre as conclusões às quais chegaram, destaca-se uma constatação verdadeiramente espantosa: Em decorrência do formato de sua carroceria, um sedan típico da época apresentava um desempenho aerodinâmico em média 30% superior se posicionado de costas para o fluxo de ar do que na posição normal de marcha à frente. Uma decorrência, dentre outros fatores, do formato de corte abrupto adotado no desenho da parte traseira das carrocerias, formando uma parede que gerava uma zona de pressão negativa atrás do carro e que agia como uma espécie de âncora aerodinâmica que tendia a se opor ao movimento à frente. Ficava evidente que a traseira teria que sofrer uma das maiores intervenções, eliminando a  configuração de parede vertical e conferindo a ela um novo perfil descendente, com o objetivo de evitar, ou pelo menos suavizar, o descolamento da camada limite, como havia sugerido Paul Jaray ainda em 1922.

Acima, numa montagem exclusiva para o autotimeline, uma simulação mostrando o turbilhonamento aerodinâmico que ocorre em diversas áreas próximas à carroceria de um carro típico do início dos anos 30. A principal das quais encontra-se logo atrás do veículo, agindo como uma espécie de âncora aerodinâmica e dificultando o movimento à frente.
A equipe chefiada por Carl Breer trabalhando com modelos de madeira no túnel de vento secreto da companhia, em Dayton, Ohio e que seria sucedido por outro maior, construído na sede da empresa, em Highland Park, Michigan. Constatações surpreendentes marcavam o início de uma revolução. 
Acima, o trio responsável pelo desenvolvimento do audacioso projeto que levou ao lançamento do Airflow (da esquerda para a direita, Owen Skelton, Fred Zeder e Carl Breer). No centro, Walter P. Chrysler posando com um modelo ainda com motor traseiro e a imagem de um teste em um dos túneis de vento construídos pela marca.
No início a equipe pesquisou a possibilidade de adoção de uma motorização traseira - mesma solução adotada pela Tatra - por facilitar o avanço do habitáculo em direção à região frontal, assumindo com maior perfeição o formato de gôta. Uma idéia que, porém,  foi logo abandonada, por causa do grande pêso dos motores Chrysler da época e os consequentes altos custos e riscos que um projeto desses geraria para a companhia. Após inúmeros testes com modelos em escala, partiu-se então para a construção de mockups (modelos em tamanho real não funcionais), igualmente confeccionados em madeira, objetivando o refinamento dos estudos de habitabilidade e das interfaces com sistemas mecânicos, bem como a análise das possibilidades e limitações de processos de produção.

Acima, três exemplos de mockups construídos em madeira, sendo que o terceiro da esquerda para a direita, já mostrava uma forma muito próxima do que viria a ser a versão de produção.
O Trifon Special e outros protótipos
Naturalmente o próximo passo foi a construção de protótipos rodantes, visando analisar suas características de comportamento dinâmico, montabilidade de componentes e interfaces de uso. O primeiro desses protótipos, desenvolvido em grande segredo para não despertar a concorrência, foi o Trifon Special, concluído em 1932 e cujo nome fazia alusão a Demetrion Trifon, um dos mecânicos que trabalhavam no projeto. Na realidade essa foi uma forma que a Chrysler encontrou para despistar eventuais espiões, fazendo-os pensar que se tratava de um protótipo fruto da iniciativa individual de um visionário, sem vínculos com nenhuma marca em particular. Por isso mesmo o Trifon jamais ostentou qualquer identificação que o ligasse à Chrysler e costumava ser levado para testes de campo a bordo de um caminhão sem identificação, acompanhado por uma equipe transportada em veículos de outras marcas, para enganar a curiosos indesejáveis.

Acima, Carl Breer aparece segurando um modelo volumétrico em escala do Trifon, radicalmente diferente daquele que aparece repousado sobre a mesa e que representa um sedan típico do período. Desenvolvido em parceria com a Budd Company, a idéia da carroceria era a de se trabalhar com painéis metálicos soldados de modo a se apoiarem mutuamente, formando um conjunto estrutural rígido.
O carro exibia um interior suntuosamente decorado - preparado para impressionar o próprio Walter P. Chrysler, quando ele dirigisse o modelo pela primeira vez – e apresentava inúmeros avanços técnicos, que iam além daqueles voltados apenas à aerodinâmica. Um dos mais significativos foi o deslocamento do motor cerca de 50 cm adiante do usual, posicionando-o assim sobre o eixo dianteiro, o que possibilitou que o habitáculo também fosse deslocado para a frente, permitindo aos ocupantes do banco de trás sentarem à frente do eixo traseiro e não mais sobre ele. Como todo o conjunto moto propulsor foi deslocado para frente, o radiador também avançou para além dos limites tradicionais, ficando agora alguns centímetros à frente das rodas dianteiras. Outra mudança importante apresentada pelo Trifon Special foi o alargamento do habitáculo, que passou a avançar pelas laterais, por sobre o espaço que antes era ocupado pelos estribos – agora eliminados - o que ao mesmo tempo promovia uma parcial integração dos paralamas à carroceria. Juntas, essas alterações proporcionaram um ganho substancial no espaço interno, tanto no sentido longitudinal quanto no transversal, tornando o carro bem mais confortável do que os modelos anteriores. Outra boa idéia aplicada ao Trifon foi a adoção de componentes intercambiáveis, com o objetivo de se reduzir os custos de produção e estoque. Era o caso das portas  do mesmo lado com desenho  perfeitamente simétrico entre si, que com poucas alterações no processo de produção poderiam ser utilizadas numa espécie de simetria em "x", onde a porta dianteira esquerda podia ser utilizada como traseira direita e assim por diante. Os paralamas do mesmo lado, seguindo raciocínio similar, só que não de forma cruzada, podiam ser utilizados tanto na dianteira quanto na traseira. Outros avanços apresentados pelo Trifon Special foram:
  • incorporação dos faróis à carroceria.
  • adoção de um capô estilo “alligator” (jacaré), composto de uma peça única de abertura frontal, em substituição às duas portinholas bi-articuladas de abertura lateral, como era o usual na época.
  • total eliminação dos estribos.
  • incorporação de um porta-malas ao desenho da própria carroceria.
  • carroceria composta por elementos de chapa de aço estampado unidos por meio de solda, adquirindo grande resistência estrutural.
  • uma maior verticalização do volante de direção.
  • vigia traseiro que podia ser aberto mediante o uso de manivelas.

Além do Trifon
Após o Trifon Special, que surpreendeu a Walter P. Chrysler, impressionando-o tanto quanto à própria equipe de desenvolvimento da marca, pela forma como ele se comportava em movimento, a Chrysler construiu outros protótipos que infelizmente não sobreviveram ao tempo como ele, mas que colaboraram para o estabelecimento de novos padrões técnicos que viriam a servir de inspiração para a concorrência nos anos que se seguiram.

Acima, outro dos protótipos desenvolvidos pela equipe de Breer, dessa vez pensado como uma arrojada versão cupê, e que assim como o Trifon Special, dispensava o uso de estribos e utilizava um parabrisa curvo em peça única. Outros detalhes curiosos, também seguindo os mesmos princípios aplicados ao Trifon  Special: As portas de desenho simétrico, que com poucas alterações no processo de produção poderiam ser utilizadas tanto como porta esquerda quanto direita; Bem como os paralamas do mesmo lado, que podiam ser utilizados tanto na dianteira quanto na traseira; Note-se igualmente os exóticos sinalizadores em forma de balizas instalados no topo dos paralamas.
Acima um sedan com formas já muito próximas do carro de produção, mas ainda sem a famosa grade do radiador ao estilo “waterfall”, sugeria o uso de faróis elípticos e parachoques de lâmina única. A idéia de redução dos custos de produção e estoque através da reversibilidade de uso de alguns componentes permanecia, possibilitando, por exemplo, que a porta traseira esquerda fosse utilizada como porta dianteira direita e vice-versa. Assim como no conceito do cupê, os paralamas dianteiros e traseiros do mesmo lado também eram idênticos. A presença de uma tampa traseira de abertura do porta-malas não seria adotada nos primeiros Airflow de série, que utilizavam um incômodo acesso pelo interior, através do rebatimento do encosto do banco traseiro. Outras diferenças com relação ao Airflow de produção são um vigia traseiro maior e as lanternas traseiras incorporadas à carroceria , que no carro de série eram afixadas sobre os parachoques.
Enfim, o Airflow ganha vida
Ao final de um longo processo de seis anos de pesquisas, finalmente o  Chrysler Airflow foi apresentado ao público, causando um grande burburinho entre os visitantes do Salão de Nova Iorque de 1934. A maioria dos avanços apresentados pelos veículos de testes, entre os quais o Trifon Special, foram incorporados pelo modelo de produção em série,  o que fez de Carl Breer e sua equipe os responsáveis pelo desenvolvimento de um dos mais legendários automóveis da era do Streamline Design.

Na comparação entre um Chrysler Imperial de 1933 e um Chrysler Airflow lançado no ano seguinte (na foto acima vê-se um modelo de 1935, onde apenas a grade do radiador sofreu alterações), nota-se que com as mudanças no package, tais como as promovidas pelo deslocamento do motor e habitáculo para a frente, bem como a incorporação do porta malas à carroceria, permitiu-se a adoção de uma silhueta mais eficiente do ponto de vista aerodinâmico. Mudanças secundárias, como o deslocamento do estepe da lateral dianteira para a parte traseira, a incorporação dos faróis à carroceria, a adoção de parabrisas em “V” inclinado e a cobertura parcial das rodas traseiras complementavam o pacote aerodinâmico. Havia sido dada a largada para uma nova era no design automotivo.
Um raio-x mostrando o então inédito posicionamento do conjunto moto-propulsor do Chrysler Airflow de 1934, 50cm à frente do usual, fazendo-o avançar por sôbre o eixo dianteiro.

Acima, na coluna da esquerda (em tom verde) percebe-se a relação direta entre o Trifon de 1932 (primeiro de cima para baixo) e o Airflow de 1934 (no meio, com a polêmica grade tipo “waterfall” (cascata), apontada por muitos como uma das responsáveis pelo fracasso do modelo no mercado e que lembrava a grade frontal ostentada pela locomotiva aerodinâmica Pullman M-10000, vista na foto ao lado). Logo abaixo – ainda na coluna verde à esquerda - o redesign de 1935 (terceiro de cima para baixo) já com uma grade em “V”, mais tradicional, numa tentativa de erguer as vendas do modelo. O Airflow de 1934 apresentou muitas inovações herdadas do protótipo Trifon Special, tais como o capô, que passou a adotar a abertura do tipo “alligator” (jacaré) e o volante de direção em posição quase vertical. Outras soluções do Trifon, como o parabrisa curvo e inteiriço, só eram disponíveis nos modelos do topo da linha Airflow. Os Airflow “normais” usavam parabrisas bi-partidos em "V",  basculantes mediante o uso de manivelas, o que facilitava em muito a climatização interna numa época em que o ar-condicionado automotivo ainda não havia sido desenvolvido. À direita (acima) um desenho mostrando a estrutura especial tipo “gaiola” adotada no carro de produção (na imagem a estrutura da versão Imperial, mais longa) e logo abaixo duas vistas da versão cupê de 1936, penúltimo ano de produção do modelo.
O estilo controverso da grade do radiador, apelidado de "waterfall", era apenas o mais evidente dentre os vários exotismos verificados no Airflow. As três lâminas horizontais com secção transversal em perfil "J" que compunham os belos parachoques em estilo notadamente Art Deco, eram facilmente deformáveis, tendo sido substituidos no ano seguinte ao do lançamento do modelo por  versões mais convencionais, porém mais resistentes, de lâminas inteiriças. Em cada lateral dianteira do cofre do motor foram instaladas aletas basculantes para a exaustão do ar quente. Cada um dos lados do parabrisas bipartido em "V" podia ser basculado individualmente através de pequenas manivelas internas, localizadas na parte superior do painel de instrumentos, facilitando assim a aeração da cabine, numa época em que o ar condicionado automotivo ainda não estava disponível. A estrutura tubular dos bancos traseiros abrigava em seu topo dois cinzeiros embutidos. Os mostradores do completo painel de instrumentos ficavam agrupados ao centro, já que as extremidades abrigavam cada uma seu próprio portaluvas. Os faróis duplos agrupados em conjuntos no formato de lágrima e as coberturas das caixas de roda traseiras completavam o visual ousado do Airflow, que tinha seu nome estampado apenas nas soleiras das portas e numa pequena placa no painel de instrumentos.
O impressionante nível de inovação proposto pelo Airflow pode ser notado nos mínimos detalhes. As janelas laterais, por exemplo, podiam ser recolhidas normalmente ou em conjunto com os quebra-ventos, puxando-se uma pequena alavanca atrás da coluna divisória entre eles (na verdade um dispositivo apresentado pouco tempo antes nos modelos Chrysler, mas que até hoje causam espanto). Junto à base do vigia traseiro, uma cortina auto-enrolável podia ser puxada para cima, conferindo privacidade e proteção contra a incidência direta de raios solares para os passageiros do banco de trás. Já o acesso ao porta-malas era um tanto incômodo, sendo feito internamente, ao se puxar o encosto do banco traseiro para cima, a partir de duas tiras localizadas na sua base, até ele travar na altura do teto. Além de exigir um certo contorcionismo, a operação podia danificar o assento do banco traseiro no caso de se manipular bagagens com formato pontiagudo.

Os Chrysler Airflow dividiam o nome e a carroceria com os DeSoto Airflow e os Imperial Airflow, outras divisões do grupo. Todos utilizavam uma exótica estrutura tubular estilo "gaiola", que soldada aos painéis em aço estampado da carroceria, compunham um conjunto de grande rigidez estrutural, na verdade cerca de quarenta vezes maior que nos Chryslers anteriores. Tamanho ganho estrutural foi alardeado em campanhas publicitárias de impacto, tais como um vídeo que mostrava um Airflow sendo arremessado de um penhasco de 25 metros de altura, capotando de frente e chegando lá embaixo suficientemente íntegro para que suas portas fossem abertas e o motorista entrasse nele e o saísse dirigindo. A campanha também foi uma tentativa de desmascarar boatos mal intencionados que teriam sido espalhados pela concorrência, e que diziam que uma carroceria feita totalmente em aço seria mais fraca que aquelas estruturadas com madeira, o que se mostrou totalmente improcedente.

Acima, à esquerda, a placa de identificação junto à parede corta-fogo, onde se lia: “Chrysler – Safety All Steel Body”, ao lado da imagem de um raio-x da carroceria, mostrando a união entre as peças estampadas e a estrutura tubular, que se apoiavam mutuamente para conferir uma notável rigidez ao conjunto. Em seguida uma maquete de sua estrutura tubular, recebendo um esforço de torção sem se deformar - nesse caso feito de forma nada científica, apenas para fins publicitários – e uma sequência fotográfica extraída do trecho de um filme de divulgação veiculado pela Chrysler como parte da campanha publicitária do modelo, cuja seqüência do capotamento pode ser vista nos cinco últimos quadros (clique sobre a imagem para ampliá-la).
Em 1934 a linha de modelos da divisão De Soto era composta apenas pelos Airflow, fazendo com que a marca amargasse um mal período de vendas até o lançamento dos Airstream em 1935. No painel acima, composto por imagens extraídas do material de propaganda da marca, percebe-se a ênfase na então nova configuração dos assentos, onde o dianteiro podia comportar três pessoas, assim como nos Airflow da divisão Chrysler, e o traseiro, posicionado à frente do eixo. A campanha publicitária procurava estabelecer uma ligação do modelo com a aerodinâmica das aeronaves, fonte inspiradora de Carl Breer para o projeto.

Além de seguro, o Airflow tinha um rodar extremamente confortável - chamado pela Chrysler de Floating Ride - em decorrência do uso de molas mais longas e macias. Segundo Jay Leno, colecionador e atualmente um dos raros proprietários de um Airflow Imperial CX, a sensação remete mais a um carro dos anos 40 ou início dos 50 do que  propriamente a de um modelo dos anos 30. Leno declara ainda não ouvir nenhum sinal de ruído aerodinâmico ao rodar com seu exemplar, conseqüência direta de sua carroceria estudada em túnel de vento.

Apesar de tudo o que representava, um fracasso de vendas
Um carro extremamente avançado, seguro, aerodinâmico, espaçoso e confortável para os padrões da época. O Airflow, que aparentemente tinha tudo para se transformar num grande sucesso de vendas, acabou se revelando, entretanto, uma grande decepção de mercado para os seus criadores. O revolucionário carro desenvolvido totalmente por engenheiros (a Chrysler ainda não possuía seu próprio departamento de estilo) teve suas fracas vendas atribuídas a vários fatores. Problemas na linha de produção, por exemplo, atrasaram as entregas iniciais, desafiando a paciência de seus compradores e alimentando os boatos espalhados pela concorrência. É o que acontecia com os parabrisas em peça única utilizados nas versões mais caras, que se por um lado destacavam ainda mais o modelo nas ruas, eram, entretanto, peças difíceis de serem instaladas, provocando um indesejável alto índice de perdas na linha de montagem. Mas foi o polêmico estilo de sua carroceria o que mais causou estranheza nos possíveis compradores, principalmente por causa de sua frente, com formas que atendiam aos requisitos da engenharia, mas que, porém, ignoravam alguns preceitos básicos de design, principalmente no que tange ao respeito às aspirações emocionais dos consumidores. E muito provavelmente esteja aqui a chave que infelizmente não foi utilizada pela Chrysler para abrir a última - porém não menos importante  - porta para que o Airflow pudesse ter se transformado num sucesso de vendas.

Sucesso ou fracasso nas mãos do design. Investigando uma das principais causas do destino do Airflow.
Antes de iniciar os parágrafos referentes à análise de design do Airflow, gostaria de esclarecer que as opiniões expressas a seguir são  uma interpretação totalmente pessoal e baseadas na experiência profissional do autor como designer automotivo e pesquisador do assunto, podendo ser livremente contestadas pelo leitor que delas discorde.

Uma abordagem do design: Entender os usuários antes do produto.
Antes de ser dado início a um novo projeto, os designers costumam considerar, além dos aspectos técnicos, o fator humano, quer seja por suas características antropomorficas, quer pelas culturais e emocionais, reconhecidas como de forte influência na aceitação ou rejeição de qualquer produto, principalmente quando este se trata de um automóvel, que para o usuário dificilmente representa apenas um mero meio de transporte, chegando a ser utilizado até mesmo como uma ferramenta de afirmação social, pois que costuma ser carregado de valores simbólicos para aqueles que o vêem e o utilizam; Valores esses que nem sempre são de fácil identificação à primeira vista. Isso porque as pessoas costumam associar significados  emocionais a aspectos imagéticos, tais como formas e côres, muitas vezes de forma insconsciente, pois tiveram seus olhares doutrinados para isso através de anos a fio de imposições associativas e influências culturais e de comportamento, seja através dos canais midiáticos ou do relacionamento interpessoal. E tais associações não costumam se desfazer de uma hora para outra; Conhecê-las, mergulhando na psique dos consumidores para entender-lhes os desejos e aspirações, é uma premissa de projeto para o designer, a qual deve sempre ser respeitada. Caso contrário, corre-se o risco de se transformar excelentes produtos do ponto de vista puramente técnico, em fracassos de vendas, por maiores que sejam todos os  outros méritos que os qualifiquem.  As pessoas costumam ir às compras portando uma espécie de biblioteca imaginária de valores e símbolos ligados às suas aspirações de consumo, esperando encontrá-los nos produtos que procuram. Há um código a ser decifrado pelo consumidor no momento em que ele toma contato com um produto. Este, por sua vez, precisa ser eficaz o suficiente para que seja facilmente identificado, lido e decodificado pelo consumidor como sendo ele o produto portador dos valores que o comprador procura. E caso as pessoas não encontrem nesse produto os símbolos que elas associaram a seus desejos e aspirações, elas simplesmente procurarão outros, até encontrar algum que lhe atenda as expectativas. Enfim, um produto bem desenhado não atende apenas às necessidades objetivas do consumidor, mas também estabelece um diálogo visual com ele, tornando seus valores facilmente identificáveis - porém não necessáriamente decodificáveis de forma consciente - já a partir do primeiro momento em que é visto. O design envolve portanto, não apenas questões técnicas, mas considera as aspirações humanas em todos os seus aspectos, utilizando-se para isso inclusive de ferramentas de comunicação.

Tomando-se por base as premissas consideradas acima, onde estariam então os pontos fracos no design do Airflow, que o fizeram ser assim tão rejeitado, a ponto do consumidor não se convencer de comprá-lo, desconsiderando todos os seus inúmeros outros méritos?
Para procurarmos entender o que ocorreu com o design do Airflow  e como seu destino no mercado poderia ter sido outro, caso a abordagem de estilo tivesse respeitado determinadas premissas, vamos analisar então seu aspecto mais polêmico e discutido, a sua frente. Entendamos aqui a região frontal  (para melhor compreensão da presente análise) como sendo tudo o que se encontra entre a parede corta-fogo - localizada logo abaixo da base do parabrisa - e o limite frontal do veículo. Ou seja, basicamente o cofre do motor, paralamas e parachoques.

Cofres de motor e grades de radiador: Simbolos de poder e virilidade.
Um dos pontos mais importantes a serem considerados é o fato de que desde que os motores dianteiros passaram a ser predominantes, ainda por volta dos anos 1900, até o início dos anos 30,  a maioria dos  carros utilizavam motores dispostos longitudinalmente atrás do eixo dianteiro. Com o aumento da capacidade cúbica e do número de cilindros, o público passou a associar a imagem de longos cofres de motor ao status de seu proprietário, pois quanto mais longos os cofres, certamente tanto maiores seriam os motores que eles ocultavam. Os longos cofres de motor haviam se transformado como consequência - e por associação - em fortes símbolos de poder e virilidade. Nesse contexto, a grade do radiador destacava-se então como a suntuosa e reluzente ponta de um ariete, como se estivesse pronta para perfurar qualquer um que se interpusesse no caminho. A grade do radiador resgatava, ao mesmo tempo, um papel que outrora fora desempenhado pelos escudos dos antigos guerreiros, que representavam, por sua vez, um símbolo de defesa, ao mesmo tempo que desempenhavam o papel de facilitadores do ataque, inspirando segurança àqueles que os portavam e impondo respeito e temor aos inimigos. Os escudos eram igualmente utilizados como verdadeiras ferramentas de marketing em plena antiguidade, ao ostentarem orgulhosamente o brasão do reino a ser defendido, simbolizando o poder e a tradição do povo por eles representados. Pois foi o resgate e a apropriação desse forte símbolo ancestral que fez da grade do radiador uma espécie de brasão de armas  e representante máximo  da herança e das tradições de cada marca. Pelo desenho dos radiadores distinguia-se com certa facilidade uma marca da outra, desde os radiadores estilo capelinha dos Bugatti, passando pelos dos Packard (facilmente identificáveis por ostentarem um desenho em dois níveis na sua parte superior) e chegando até aqueles ao estilo "Partenom" dos Rolls-Royce, dentre inúmeras outras variantes apresentadas por outras marcas. Era quase que um desfile de heráldica que podia ser visto pelas ruas de todo o mundo naqueles tempos, com cada modelo defendendo a sua marca de origem (o que de certo modo permanece até os dias de hoje, ainda que de forma menos evidente). E se longos cofres de motor e radiadores proeminentes tinham um papel tão forte no imaginário dos consumidores daquela época, é fácil entendermos a estranheza causada pelos Airflow, com seus cofres curtos e arredondados, ornamentados por grades que pareciam ter sido encurvadas pelo vento, tornando-se apenas uma reminiscência dos imponentes radiadores de então. O poder e a virilidade até então ostentados pelo antigo conjunto radiador/cofre do motor tinham sido totalmente apagados da memória pela Chrysler, sem pedir licença para os consumidores. Foi uma verdadeira agressão estética aos padrões vigentes, ousadia demais aplicada a uma área carregada de um simbolismo tão forte para os consumidores, obtendo como resposta uma forte rejeição da parte do mercado. Para completar, não podemos nos esquecer que os automóveis são produtos expressivos, despertando em quem os vê sensações as mais diversas, que vão da simpatia à agressividade. E os Airflow apresentavam feições um tanto estranhas e indefinidas, não conseguindo provocar a empatia necessária para que fosse despertado o desejo da compra dos consumidores. Naquele contexto histórico, talvez o maior problema da Chrysler no caso dos Airflow tenha sido o de ignorar o fato de que as pessoas podem até se desvencilhar de seus símbolos, mas essa transição não acontece da noite para o dia, devendo portanto ser feita de modo progressivo, respeitando-se o tempo necessário para que novos símbolos assumam progressivamente o lugar dos anteriores. E quanto mais fortes os símbolos, mais lentos e suaves devem ser os processos de transição. Mudanças abruptas costumam ser traduzidas pelos usuários como uma espécie de agressão aos seus valores estéticos, que são automaticamente defendidos por elas, mesmo que de forma inconsciente, através da rejeição à compra, até que estejam preparadas e convencidas da necessidade de mudanças, tornando-se receptivas para recebê-las.

 
Acima, Carl Breer e a polêmica frente do Airflow 1934, ano de sua introdução no mercado. Rejeitada pelo público, a grade ao estilo "waterfall" teve uma existência efêmera. Tanto que a Chrysler procurou, já a partir do segundo ano de produção do modelo, substituí-la ano após ano por interpretações mais convencionais, mas sem sucesso. O modelo já havia se impregnado da imagem que aqui no Brasil levaria o nome de "mico de mercado", desaparecendo totalmente após 1937, apenas três anos após seu lançamento.
 
Seguidores do Airflow encontraram um lugar mais feliz na história
Paradoxalmente, o modelo que foi um grande fiasco de vendas, transformando-se num verdadeiro pesadelo para seus criadores, acabou servindo de inspiração para os concorrentes, dentre os quais o de maior sucesso foi o Lincoln Zephyr, que pouco tempo depois do Airflow, venderia muito bem, graças à suas linhas mais suaves e harmoniosas, criadas pelo designer John Tjaarda. Assuntos para futuros artigos no Autotimeline.


O Airflow protagonizou um verdadeiro salto evolutivo na história do automóvel,  não apenas no que concerne ao conceito do automóvel em si, mas também por ter servido como plataforma de lançamento de processos construtivos inovadores, sugerindo novas maneiras de se racionalizar os custos de produção, como foi o caso da adoção de componentes intercambiáveis. Tais métodos foram amplamente copiados pela concorrência, contribuindo para a modernização do pensamento projetual de toda a indústria automobilística.
Ao fim do exaustivo processo de desenvolvimento do revolucionário carro da Chrysler e de seu total desaparecimento apenas três anos após o seu lançamento, restaram muitas lições que ainda são alvo de discussão cerca de 70 anos após a sua bombástica aparição. E apesar de sua triste trajetória comercial, o Chrysler Airflow será para sempre lembrado como um dos carros de maior influência na história da evolução do automóvel. Honras à ele.

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Airflow e Airstream: Irmãos e concorrentes entre si
Ao contrário do que normalmente se pensa, e apesar de seu fracasso comercial, é um erro se achar que a Chrysler quase quebrou por causa das malfadadas vendas do Airflow. Isso porque a Chrysler não apostava todas as suas fichas nas expectativas de lucro dos Airflow. Já em 1935, ano seguinte ao da apresentação do modelo, eram lançados os Chrysler e DeSoto Airstream, mais simples, comportados e baratos que seus sofisticados e polêmicos irmãos mais velhos. E isso talvez tenha colaborado um pouco para diminuir o brilho dos Airflow em número de vendas.


Lançados em 1935, os Airstream apresentavam um design bem mais comportado que o dos Airflow, resgatando os tradicionais cofres de motor proeminentes, com os radiadores voltando a assumir papel de destaque, caindo mais no agrado dos consumidores e chegando a vender cinco vezes mais que os Airflow em 1935. Essa relação chegou a incríveis nove para um em 1936, quando o nome Airstream deixou de ser utilizado nas duas divisões que o fabricavem, a Chrysler e a De Soto.

Juntamente com as divisões Dodge e Plymouth, os Airstream ajudaram o grupo a fechar o ano de 1935 no azul, o mesmo ocorrendo em 1936 e 1937, os dois últimos anos dos Airflow, que tiveram seus prejuízos compensados pelos lucros com outros modelos do grupo. Só para se ter uma idéia, em 1936 a Chrysler chegou até a pagar um bônus no montante de 2,3 milhões de dólares aos seus funcionários.

O que nunca saberemos é se, caso os Airstream nunca tivessem sido desenvolvidos, os Airflow não tivessem vendido mais do que venderam. De qualquer maneira, os Airstream ofereciam ao público a possibilidade de adentrar aos novos tempos sem ferir suscetibilidades, mostrando que muitas vezes a receita do sucesso - quando o termômetro são os frios números de vendas - reside em uma evolução ponderada e gradual.

Porém, com toda a certeza o mundo automotivo perderia muito de seu charme se não fossem as ousadias como as cometidas pelos Airflow para mostrar o caminho da evolução para os mais tímidos. E o que seria pior, sem elas talvez estaríamos rodando em modelos dez ou mais anos defasados com relação ao que temos hoje. Afinal, de vez em quando todos nós necessitamos de um empurrão evolutivo. Este é o papel dos avatares. Este foi o papel do Airflow.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A evolução do porta-malas (Parte I)

Desde sua criação, o automóvel vem passando por constantes aperfeiçoamentos. Novos materiais e processos de produção têm contribuído, década a década, ano após ano, para essa evolução. Porém, nem sempre nos damos conta de que outros fatores, tais como a melhoria da infra-estrutura viária e as mudanças culturais e comportamentais da sociedade, desempenham um papel igualmente importante no processo de transformação do produto automóvel. Os hábitos de cada período histórico costumam traduzir-se em necessidades que acabam por transformar os produtos ao longo do tempo. Alguns desses hábitos permanecem e aprofundam-se; Outros nem tanto, podendo até desaparecer por completo com o passar do tempo, deixando de integrar a lista de necessidades e exigências dos consumidores em geral. Um bom e recente exemplo é a progressiva abolição dos acendedores de cigarros nos automóveis - que de acessórios bem vindos na época em que fumar era um hábito que parecia conferir charme e elegância, tendo sido inclusive fartamente incentivado pela mídia - passou a ser encarado em tempos recentes como um problema de saúde pública, entrando para o rol dos comportamentos negativos e socialmente reprováveis. 

Em meio a esse processo evolutivo, as partes que compõe o produto automóvel foram contribuindo para as mudanças em seu aspecto geral. O porta-malas, por sua vez, não é exceção à regra, tendo sido influenciado em suas características de forma, utilidade, localização e construção, na mesma medida em que a sociedade foi se transformando e alterando seus requisitos de uso. Senão vejamos:

Nossa primeira consideração deve recair no fato de que, ainda nos seus primeiros dias, a maioria dos automóveis carecia de qualidades como confiabilidade e conforto, exigindo de seus proprietários ou motoristas certos dotes de mecânica para o enfrentamento – muitas vezes sozinhos - de algumas emergências no meio do caminho. Tais imprevistos ocorriam, não raro, distantes de qualquer ajuda especializada. Isso porque os carros rodavam por estradas pouco ou nada preparadas em termos de infra-estrutura de assistência técnica de emergência, abastecimento ou acesso a meios de comunicação, tornando qualquer viagem uma aventura em potencial e fazendo com que as pessoas evitassem, na maioria das vezes, percursos mais longos, destinados por isso mesmo a uns poucos audaciosos; Tal fato tornava a necessidade de acondicionamento de grandes quantidades de bagagem uma situação rara. De um modo geral então, os carros eram utilizados em percursos relativamente curtos, suficientes apenas para se fazer um bom piquenique entre familiares e/ou amigos na zona rural mais próxima, um hábito relativamente comum no início da história do automóvel. 

Acima quatro integrantes de um grupo de cinco felizes “piqueniqueiros” (o quinto está tirando a foto) e um Ford Modelo T de 1912. O piquenique era então um hábito popular.
Acima, algumas variações de cestas de vime para bagagens no início do século XX. Da esquerda para a direita, uma imagem de época seguida de um baú lateral traseiro de um Packard Modelo F de 1903, um Buick modelo 10 de 1908 (com baú posicionado no estribo); E dois exemplos de posicionamento do baú na parte traseira (um Lozier Tipo 1 de 1908 e um Pierce-Arrow Modelo 48 Touring de 1914).
Por volta dos anos 1910, alguns cupês ou runabouts já apresentavam uma espécie de ancestral do porta-malas moderno, enquanto que nos modelos maiores, do tipo touring ou sedans era comum a utilização de baús acomodados em racks afixados à carroceria, primeiramente aproveitando-se as plataformas de apoio proporcionadas pelos estribos, sendo que num segundo momento generalizou-se a fixação dos baús na parte traseira desses modelos.
Alguns dos primeiros modelos a incorporar uma espécie de porta-malas similar ao que conhecemos hoje, foram os cupês e runabouts. Nas duas primeiras imagens acima (da esquerda para a direita) vemos um Stutz Bearcat de 1923, ainda com seu baú separado da carroceria, porém devidamente encaixado em um rebaixo da mesma; Um Packard Cupê de 1917 com uma curiosa solução de acesso por meio de duas portinholas traseiras (terceira e quarta imagens), seguido de dois Runabouts 1918 e 1922, da mesma marca, já apresentando uma abertura semelhante a aquela dos porta-malas atuais.
Na imagem acima, alguns exemplos de fixação dos baús sobre os estribos. Todos os modelos mostrados, exceto o terceiro da esquerda para a direita (ao fundo), são da marca Packard, todos de 1925, exceto o último da direita, um modelo de 1916.
Acima, da esquerda para a direita, um Stutz de 1933 com seu rack recolhido. Na seqüência o detalhe do baú de couro de um raríssimo Tracta E de 1930, seguido de um Lincoln do mesmo ano. Um Auburn de 1932, já com um baú metálico e um Duesemberg de 1930, onde nota-se o contorno do plano de fundo do baú, feito especialmente para se acomodar com precisão à forma da parte traseira do modelo.
Acima, nota-se o início do processo de incorporação do baú ao conjunto da carroceria em quatro exemplos, da esquerda para a direita: Bentley 8-Litros Gurney Nutting Sportsman Cupê de 1931, Rolls-Royce Phantom II Continental Drophead Sedanca Cupê 1934 encarroçado pela Mulliner, Duesenberg Modelo J Victoria Cupê encarroçado pela Judkins em 1932 e o popular BMW-Dixi 3-15 de 1928.
Ainda na primeira metade dos anos 1930 o volume do porta-malas funde-se definitivamente à carroceria, passando a fazer parte integrante da mesma. Ainda assim era notável nesse período a volumetria da área ocupada pelo porta-malas em grande parte dos modelos. Acima, da esquerda para a direita, os exemplos da vista do alto de um Dodge 4-door sedan, seguido do Packard Touring Sedan de 1938, e detalhes da abertura do porta-malas de um Packard Touring Sedan de 1937. Por último, um Cadillac Série 60 Touring Sedan de 1936.

A história da evolução do porta-malas continua em um futuro post.


Créditos das imagens: Conceptcarz, Shorpy, Detroit Public Library, arquivo pessoal. Montagens fotográficas feitas exclusivamente para AutoTimeline.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Anos 1930: A época de ouro do design automotivo (Parte II).


Para compreendermos as bases nas quais se apoiou o Streamline Design, voltemos novamente no tempo. A percepção de que a forma exerce uma importante influencia no grau de dificuldade com que um objeto se desloca no espaço é bastante antiga. Por esse motivo, desde o início de sua história, o automóvel sofreu intervenções da parte de pioneiros como Charles Jeantaud e Camille Jenatzy, que buscavam reduzir a resistência aerodinâmica em veículos de competição ou de recorde.

Acima (da esquerda para a direita) os elétricos Jeantaud Profilée, de 1898 e o “Jamais Contente” de Jenatzy – 105,312 Km/h em 1899 – seguidos pelo General 40HP Spider, de 1902. A preocupação com a aerodinâmica começou cedo.

Tais esforços foram sofrendo aperfeiçoamentos, até que - a partir dos anos 1920 - estudiosos do tema, como Edmund Rumpler e principalmente Paul Jaray, ajudaram a formatar as bases científicas que  influenciariam o desenho das carrocerias a partir dos anos 1930, as quais viriam a ser aperfeiçoadas em pleno período de depressão por pesquisadores como Wunibald Kamm. Estes que podem ser considerados como os capítulos iniciais do desenvolvimento da aerodinâmica aplicada ao automóvel, compõe um assunto que merecerá, futuramente, um artigo específico aqui no Autotimeline.

As pesquisas de Rumpler, Jaray e Kamm no campo da aerodinâmica. Assunto para um futuro post.

Até meados da primeira metade dos anos 1930, entretanto, a aplicação dos conceitos aerodinâmicos nos automóveis de produção seriada era bastante baixa, restringindo-se a algumas encomendas especiais feitas por entusiastas dispostos a pagar altos preços, como foi o caso da carroceria em formato fusóide elaborada pela Carrozzeria Castagna, a pedido do Conde Ricotti, sobre um chassi Alfa Romeo, em 1913; Ou mesmo o Opel “Egg”, de Max Lochner, em 1912.

Alfa Romeo/Castagna do Conde Ricotti e Opel Egg. Aerodinâmica sob encomenda em plenos anos 1910.

De volta aos anos 1930, a Grande Depressão trouxe como conseqüência uma forte retração no consumo, mesmo por parte da população que ainda tinha condições de fazê-lo. Tornou-se então absolutamente necessária a elaboração de novos estímulos para que os consumidores voltassem às compras, fazendo a roda da economia girar novamente.

A grande maioria das pessoas encontrava-se numa espécie de estado de desalento com o sistema, que os havia colocado bem no meio do “olho do furacão” de uma crise sem precedentes. A vontade de todos era a de dormir e acordar no dia seguinte a aquele pesadelo, numa espécie de mundo renovado, repleto de progresso e modernidade. Um mundo talvez despido dos excessos que levaram à crise, mas nem por isso um mundo menos atraente. Esse estado de frustração e desejo de renovação colaborou com uma certa alteração no comportamento social, visível em atitudes carregadas de uma atmosfera mais introspectiva, menos eufórica que nos anos anteriores à crise, denotando um clima de reavaliação de conceitos. Esse ar “blasé” assumido nos anos de depressão, tinha entre alguns de seus representantes máximos a atriz Greta Garbo e sua célebre frase “I want to be alone”, eternizada em “Grande Hotel”, Oscar de melhor filme de 1932. Uma atmosfera refletida igualmente na moda e no design.

Naquele período respirava-se o estilo Art Déco, nascido por volta de 1920 e que teve seu título adotado a partir da “Exposition Internationele dês Arts Décoratifs et Industriels Modernes”, ocorrida em Paris, em 1925. O Art Déco exerceu grande influência sobre a arquitetura e o design até aproximadamente 1939. Em flagrante antagonismo com relação ao estilo seu antecessor, o Art Nouveau, (caracterizado por linhas sinuosas e um tanto rebuscadas, inspiradas em elementos da natureza), o Art Déco passou a fazer uso de uma temática essencialmente geométrica, numa espécie de “ode à máquina e à tecnologia”, que embalava de algum modo os sonhos de modernidade acalentados pela sociedade em geral, mas não com a força suficiente para reerguer e animar as pessoas para uma volta às compras.

Greta Garbo, com seu ar “noir” e alguns exemplos da influência do movimento Art Déco: um isqueiro de mesa Ronson “Touch Tip”, o Cord 812 (com sua carroceria streamline, porém com forte presença de elementos do Art Déco), a garrafa de Crush e o Edifício Chrysler.

Era preciso, portanto, um estímulo novo e mais forte, de tamanho impacto que impulsionasse as pessoas a “comprar um novo sonho”. Algo que imprimisse a sensação de velocidade no necessário, almejado - e desejavelmente visível - processo de transformação da sociedade. Era essa a palavra: Velocidade! E nada melhor para exprimir a idéia de velocidade do que a forma em movimento alterada pelo atrito com o ar, uma forma aerodinâmica. Porém, não necessariamente aerodinamicamente estudada, mas que fosse ao menos percebida como tal. E essa representação da velocidade foi o grande trunfo na busca do estabelecimento de um novo estímulo de consumo, chamado de Streamline Design. O formato de gota tornou-se então a inspiração para todos os produtos, mesmo aqueles que não necessitavam se deslocar no espaço. O que importava era passar a sensação de movimento, de dinamismo, de velocidade.

Clique neste link para ver um documentário da época sobre as vantagens da aplicação da aerodinâmica nos automóveis: "Streamlines" - Vídeo institucional Chevrolet (1936)

O Streamline Design valorizava a representação do movimento, da velocidade, utilizando-se exaustivamente da forma de gota, replicada sem pudores mesmo em objetos estáticos.

A Feira Mundial de Chicago de 1933, que ostentava o título “A Century of Progress” (e que foi reaberta em 1934, em decorrência de seu estrondoso sucesso), trazia como tema a inovação tecnológica e acabou se tornando um marco para o Streamline Design, pois ali foram lançadas desde as locomotivas aerodinâmicas Pullman M-10000 da Union Pacific Railroad e a Burlington Zephyr, até os protótipos Pierce Silver-Arrow e Briggs Streamline, este último o predecessor do bem sucedido Lincoln Zephyr de 1936. Esses veículos estão entre os pioneiros do Streamline Design, que fez escola nos Estados Unidos.

As locomotivas aerodinâmicas Pullman M-10000 e Burlington Zephyr, apresentadas primeiramente na Feira Mundial de Chicago de 1933. Duas outras atrações no evento foram o carro conceito da Briggs (no alto, à direita), que serviria de base para o desenvolvimento do Lincoln Zephyr de 1936 e o Pierce Silver-Arrow (canto inferior direito), que inspiraria uma versão de produção bem menos radical. Todos protagonistas de uma nova tendência de estilo, o Streamline Design.

Também em 1933, só que do outro lado do Atlântico - mais especificamente na Tchecoslováquia (atual República Checa) - a Tatra apresentava o T-77, projetado por Hans Ledwinka, chefe de engenharia da marca. A Tatra foi a grande pioneira na aplicação da aerodinâmica de embasamento científico nos automóveis, bem como da utilização das patentes de Paul Jaray. Sua história como uma das mais revolucionárias marcas de automóveis de todos os tempos também merecerá espaço em um futuro post no Autotimeline.

Acima, o revolucionário Tatra 77 de 1933, o estúdio da marca na época e seu principal mentor, o engenheiro Hanz Ledwinka. A aerodinâmica de Jaray aplicada na produção em série.


E assim começou a era do Streamline Design, cuja história continuaremos a contar nos próximos posts. 

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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Anos 1930: A época de ouro do design automotivo (Parte I).

Para se entender a história do automóvel
Uma trajetória repleta de capítulos que retratam a saga dos pioneiros de uma indústria da maior importância para o século XX. Idéias geniais, fracassos retumbantes, sucessos estrondosos, a evolução da tecnologia, do design e, sobretudo, da economia e da sociedade, com seus períodos de crise e recuperação.
A história do automóvel não é estudo obrigatório apenas para os apaixonados pelo tema. É uma das melhores maneiras para se compreender a evolução da sociedade industrial e os passos que fundamentaram as bases de toda a economia mundial, pavimentando o caminho para que chegássemos à atual sociedade da informação.
Desde a linha de montagem móvel de Ford até o crescimento espetacular da economia chinesa no século XXI, o automóvel foi influenciado, e por sua vez influenciou, e em alto grau, todo o comportamento social sob vários aspectos, desde a questão do emprego e do crescimento econômico, passando pelas conexões com a política e chegando à arte, à educação e à cultura.
Dentre todos os aspectos, o design - com suas preocupações não apenas estéticas, mas as também relacionadas, por exemplo, ao aperfeiçoamento da interface homem/máquina e a conseqüente melhoria da qualidade de vida das pessoas - tem respondido ao longo dos anos, igualmente, por grande parte do estímulo de consumo necessário para fazer girar a roda da economia, corroborando para tirá-la dos momentos de crise. E talvez o caso de maior relevância nesse sentido tenha sido o surgimento do movimento Streamline Design, que mudou para sempre a estética não só dos automóveis, mas praticamente de todos os outros produtos, ajudando aos Estados Unidos e ao mundo a saírem da maior crise econômica de todos os tempos até o momento. Vamos então conhecer um pouco mais a respeito dos motivos, das decisões e das consequências desse importante período da história do design e de seus reflexos para a sociedade. Para tanto, teremos que retroceder a cerca de uma década anterior ao período do Streamline Design, para compreendermos melhor as causas que levaram até ele.

Estamos nos anos 1920. A Europa procura se recuperar economicamente, após o fim das hostilidades da Primeira Guerra Mundial; E os EUA passam a gozar de grande prosperidade econômica. Henry Ford, que havia lançado em 1913 (portanto cerca de um ano antes da guerra) as bases da produção seriada de baixo custo, escolhendo seu Modelo T (que já havia sido lançado em 1908) para inaugurar a primeira linha de montagem móvel da história, ajudou a “colocar a América sobre rodas”, como ele mesmo havia prometido. Mas o raio de influência da decisão de Ford foi muito maior, ajudando a colocar não só a América, mas o mundo todo sobre rodas, vindo a mudar para sempre o modo pelo qual todos os produtos – e não apenas os automóveis - seriam produzidos a partir de então. O Modelo T só se aposentaria em 1927, para dar lugar ao Modelo A.

Ford modelo T versão Roadster de 1927,
o último ano de produção do modelo


O crescimento econômico dos EUA, no período que ficou conhecido como “Os Loucos anos 20”, ajudou a catalisar uma radical mudança de comportamento da sociedade, que via em manifestações artísticas tais como o modernismo ou a dança do Charleston, e em ícones do novo comportamento feminino, como a atriz Louise Brooks, com sua personalidade impetuosa e seu corte de cabelo curto e liso, os sinais claros de um movimento de liberação nos costumes. A euforia econômica americana levou ao furor especulativo nas bolsas de valores, que ajudaram a muitos a enriquecer da noite para o dia. Com isso as marcas de automóveis de alto luxo prosperavam como nunca, sendo estimuladas a lançar modelos mais requintados, abrigando motores cada vez maiores debaixo de refinadas e muitas vezes exclusivas carrocerias encomendadas a especialistas, que proliferaram em grande número. Enquanto Ford e os fabricantes que nele se inspiravam, procuravam produzir carros com preços cada vez mais competitivos, as elites se refugiavam em marcas como Duesenberg, Cadillac, Cord, Stutz ou Marmon para se destacarem dos “simples mortais”. Desse período restaram verdadeiras obras de arte sobre rodas, construídas por legítimos mestres artesãos altamente especializados, testemunhos de um dos momentos mais fascinantes da história do automóvel.

Duesenberg e Louise Brooks: Símbolos máximos do luxo e da beleza dos anos 20, período de liberalização dos costumes

Mas devido ao furor especulativo, a festa chegaria a um final trágico, em 12 de outubro de 1929. Foi quando a bolsa de valores de Nova Iorque quebrou, levando a maioria de seus investidores à falência do dia para a noite e em uma proporção jamais vista.

A quebra da bolsa de valores de Nova Iorque também vitimou o mercado dos carros de luxo


Entremos então agora nos anos 1930. A quebra da bolsa de Valores de Nova Iorque pôs fim a uma era de grande prosperidade, mergulhando a América e grande parte do mundo num período de crise econômica de proporções inéditas, que ficou conhecido como “A Grande Depressão”. Para se ter uma idéia, a produção industrial dos EUA caiu para um terço dos níveis anteriores à crise. Nove mil bancos e 86 mil negócios faliram, desencadeando uma onda de suicídios de ex-milionários e deixando cerca de 15 milhões de americanos desempregados nos anos que se seguiram ao “crash” da bolsa. O que ocorreu na sequência foi a miserabilização das famílias, que formavam filas para ganhar um pedaço de pão.

O período da Grande Depressão nos anos 30 gerou desemprego e fome


Com a falência dos outrora ricos compradores de modelos de luxo, desencadeou-se um lento e doloroso efeito dominó, que acabou por decretar - ao longo da década de 30 e até o início da década de 40 - o desaparecimento de marcas como Ruxton, Peerless, Du Pont, Bucciali, Stutz, Marmom, Cord, Duesemberg, Pierce-Arrow, Minerva e Avions-Voisin, dentre outras.

Cord L-29 Phaeton de 1930 (a protuberância esférica logo abaixo do radiador é um diferencial dianteiro). A Cord foi uma pioneira no uso da tração dianteira nos EUA. Curiosamente, a solução encontrada na época foi a inversão no posicionamento do conjunto motor-câmbio (destacados em verde na imagem abaixo, à esquerda). Projetado a partir de 1927 e lançado em 1929, suas proporções extremamente elegantes, fruto não apenas de uma tendência da época para carros de alto luxo, mas também do talento de um grande designer, chamado Alan Leamy (abaixo, à direita), que infelizmente viria a falecer ainda muito jovem
Na vista lateral acima, no canto inferior direito (desenho de Alan Leamy), representando o então futuro Cord L-29, nota-se as proporções típicas dos carros dos anos 20. Os motores, posicionados na esmagadora maioria dos casos, na região central dianteira, eram instalados em um arranjo estrutural composto de chassis e carrocerias de grande altura, que impunham a adoção de estribos para o acesso ao habitáculo. No caso dos carros de luxo, com motores enormes (geralmente oito cilindros em linha), os capôs mais longos conferiam proporções ainda mais elegantes, que formavam um conjunto harmonioso com os eixos posicionados nas extremidades e rodas de grande diâmetro. O estilo quase arquitetônico, composto por grandes linhas longitudinais interceptadas por colunas verticais, daria lugar, a partir da metade dos anos 30, a uma verdadeira revolução no conceito das carrocerias.


Mas como toda crise traz em si mesma as sementes de novos surtos de prosperidade, a Grande Depressão forçou os fabricantes sobreviventes a despertarem para a necessidade da criação de um novo estímulo de consumo. E a resposta veio com o movimento que ficou conhecido como Streamline Design (nosso assunto para o próximo post).